
A partida da viagem marcou logo o modo como tinha de ser encarada: man-man, o que traduzido do cantonense quer dizer, devagar, calma. Paciência, muita paciência. Ou a visita não era à China…
Nada estava marcado. Só a partida de barco a partir de Macau até Cantão.
Um guia e nada mais.
A China estava a implementar há uma década o lema: um regime, dois sistemas e dava os primeiros passos no turismo. As viagens pela China eram uma aventura, com permanentes improvisos e aprendizagens.
A partida era no porto interior de Macau.
Devíamos ter chegado uma hora antes. Foi em cima da hora. Carro mal estacionado e corrida para o barco.
Fomos os últimos a entrar e segundos depois a embarcação partia. Ao princípio da noite.
Por gestos, lá nos indicaram o nosso quarto. Afinal estava ocupado. Alguns homens sentados na cama a conversar e outro em pé.
O empregado do barco mandou-os para a rua e também ele foi embora.
O quarto era para esquecer. Tinha um cubículo (numa versão optimista seria o wc), a cama tinha roupa toda encardida, uma mesa e candeeiros. A estrutura de metal já tinha conhecido a tinta há muitos anos.
Deitámo-nos vestidos e pouco dormimos. O barco fazia imenso barulho.
A viagem pelo delta do Rio das Pérolas demorou toda a noite. Com muitos abanões e ruído do motor.
Na altura não havia estradas que permitissem uma viagem rápida. Nem barcos turbo.
O mais trivial era o barco que fazia a travessia durante a noite.
Cantão
A chegada a Cantão (Guangzhou) foi bem cedo. Por volta das 6 da manhã, mas a fronteira só abre às 7h.
O pequeno almoço foi improvisado. Umas bolachas e chá.
A hora de espera dentro do barco é sensacional.
Alguns passageiros aguardam encostados a um dos extremos da embarcação. Outros, a maior parte, começam a preparar a bagagem para a saída. A bagagem são dezenas de sacos de plástico enormes, frigoríficos, aparelhos de televisão, aparelhos de alta fidelidade. Muitos vão às compras a Macau ou Hong Kong, onde os produtos são mais baratos e depois levam-nos de barco para a China.
Por momentos pensei que seria para utilizarem nas suas casas.
Mais tarde, com outras visitas à China, fiquei mais convencido de que os aparelhos são para o comércio paralelo.
Foi fácil atravessar a fronteira. Os vistos foram obtidos em Macau.
Devido à proximidade com Macau e Hong Kong (está a 120 km), Cantão é uma das cidades mais desenvolvidas da China. Também das mais populosas. No entanto, o ambiente é calmo. Pelo menos era assim em 1988. Os chineses (aqui são maioritariamente de etnia Han) são muito curiosos. No desembarque e na visita à cidade olham com atenção para nós. Durante um longo tempo. Depois, caso sigam acompanhados, trocam comentários e riem.

Os habitantes de Cantão já conhecem ocidentais. Por isso mesmo, a curiosidade fica por aqui. Nesta altura e em outras regiões a curiosidade não se limita ao olhar.
Tocam, mexem na roupa, na nossa pele, nos cabelos. Desgraçadas das mulheres louras.
Tivemos esta experiência em Zhengzhou.
A chuva ligeira foi o maior incómodo em Cantão.
Percorremos várias ruas da cidade, muito verdejante, com avenidas largas.
O principal meio de transporte era a bicicleta. Havia também muitas motorizadas, carros e camiões mas o trânsito não provocava longas filas. Nem se sentia muito a poluição.
Uma das visitas foi ao parque Yuexiu. Um amplo espaço verde com a estátua dos cinco Goats.
Como chegámos cedo ainda havia locais a fazerem Tai Chi no parque e em várias ruas com espaços verdes.

Um outro local de visita obrigatória é o Sun Yat-sen Memorial Hall
No exterior um jardim muito bem cuidado.
Em frente, o edifício principal, com várias dezenas de metros de altura e com arquitectura tipicamente chinesa.
Foi construído em 1929 e restaurado uma década depois da nossa visita, em 1998.
Sun Yat-sen é uma referência para os chineses. Uma das principais figuras do séc. XX e é considerado o “pai” da China republicana. Em Macau também existe uma casa memorial que evoca a passagem de Sun Yat-sen pelo território.
No interior do memorial, em Cantão, também existem objectos e correspondência de Sun Yat-sen.

Com o dia enevoado, um ambiente sereno e pessoas a queimarem pivetes de incenso no templo da família Chen, entramos num outro mundo.
A escrita chinesa, os rituais, as inscrições… não entendemos nada das mensagens que estão no pagode mas compreendemos o sentido. Ofertas, dedicação, lembrança, protecção.
São estes alguns dos motivos que levam as pessoas, com ar humilde e muito concentrado, a ajoelharem-se em frente do altar.
O fumo e as cores – com os dourados fortes e o vermelho dominante – ajudam a criar um ambiente de recolhimento.

O templo das Six Banyan Trees
O templo dos Six Banyan Trees
é diferente.
O ambiente não é só de recolhimento.
Tem a espectacularidade da arquitectura do pagode budista.
O edifício mais alto, o Hua (Flower) pagode, tem nove pisos e as cores predominantes são o vermelho e branco.
O templo é muito antigo.
A última reconstrução data do início do séc. XX e é um dos locais preferidos para os chineses queimarem os pivetes no ano novo chinês e no festival das lanternas.
Tal como em muitos outros lugares da China, os locais acreditam que este ritual lhes dá sorte.
No interior estão algumas relíquias budistas e dois enormes budas feitos em cobre.
Nesta altura, em 1988, viajar na China não era fácil.
Longas distâncias sem estruturas de transporte rápidas. A melhor era o avião. Só que não dava para improvisar.
A primeira experiência foi logo em Cantão.
O sistema é muito confuso.
Fazer reservas por telefone é impossível. Além do problema da língua, a capacidade de resposta é quase nula.
Das duas, uma. Ou na delegação da CAAC China International Airlines Company, (três meses depois, por decisão governamental, a companhia foi dividida em várias empresas) ou diretamente no aeroporto. Aqui a coisa era divertida….
De manhã cedo perguntava-se pela disponibilidade.
Sim, havia bilhete. Como o voo era às 16h, tínhamos de estar às 14h no escritório local para se comprar o ingresso. Agora não vendiam.
Era o primeiro da fila, muito antes das 14h.
No entanto, quando da reabertura, já não havia bilhetes. Porquê? Como não havia? Claro que eles não entendiam nada. Mas o tom de voz mais alto dava para perceber a minha irritação. O resultado era o mesmo. Viravam costas. Se muito do diálogo era gestual, este gesto dizia tudo.
Mais horas de espera, por vezes para o dia seguinte e sem ter a certeza se conseguia acesso ao voo.
Esta situação repetiu-se.
Mudei de estratégia.
Logo no primeiro contacto insistia para verem o passaporte.
Não é preciso, apontavam para o relógio, mais tarde… Não, vê se está ok. Empurrava o passaporte para a mão deles. No interior estavam notas de dólares.
Comecei a ter bilhetes.
Guilin
Devido a estes contratempo só chegámos a Guilin ao princípio da noite do dia seguinte.
Mais uma vez, chuva. Nevoeiro temperatura baixa, casas de madeira em ruas escuras e com lama.
Poucas pessoas falavam inglês.
Meio perdidos, sem qualquer referência, de noite, o nosso salvador foi um jovem.
Pertencia a uma organização local e ajudava os estrangeiros. Recomendou-nos o Guilin Osmanthus Hotel.
Dupla recomendação. Pedir para ficar na parte mais moderna. O preço é o mesmo e as condições são melhores. Assim foi.
Com a companhia do jovem resolvemos o problema da primeira noite.
Esta parte da história não termina sem um pormenor de que me envergonho.
Não fazia a mais pequena ideia do valor. A moeda é o renminbi (dinheiro do povo) e está dividido em yuans. Tinha vários no bolso. Tirei uma ou duas moedas, ofereci ao jovem.
Os empregados do hotel sorriram, o jovem foi embora, talvez desolado e com razão.
A gorjeta foi uma insignificância.
Com a experiência da passagem pelas ruas de Guilin à procura de um hotel, nessa noite, já não saímos.
Jantar e preparar o rumo seguinte: a descida no rio Li até Yahngshuo.

Muitos anos depois, e com alguma frequência, ainda me lembro desta viagem de barco.
Memórias existencialistas e de confronto. Entre a agitação das grandes urbes, o cosmopolitismo e a vida simples, calma desta gente.
O barco estava quase cheio. A entrada foi num cais de madeira, a embarcação devia levar cerca de 30 passageiros. Várias mesas para quatro pessoas ao lado do corredor central.
Tivemos a companhia de um casal de Taiwan. Vivia-se uma fase de tentativa de conciliação, de diálogo entre a China “mãe” e a ilha desavinda.
Neste ambiente de abertura, alguns habitantes de Taiwan viajavam até à China, por Hong Kong.
À descoberta de ramos familiares e das origens. Eram estes os objectivos principais.
No caso dos nossos vizinhos aproveitavam a oportunidade para conhecerem um dos destinos mais famosos do sul da China.

A descida do rio Li é de facto fantástica. São pouco mais de 80 km entre Guilin e Yahngshuo e a viagem demora cerca de cinco horas.
No cais de entrada aparecem vendedores de quinquilharia. Aproximam-se do nosso barco em jangadas de bambu.
No percurso este tipo de transporte é usual. Por vezes são pescadores.
Noutros casos, alguém que transporta vegetais.
Um pouco mais à frente; na beira do rio, uma mulher lava alguns produtos agrícolas.
Pessoas e animais trabalham o campo. Num silêncio enorme, tal como a linha de vista.

Na parte inicial, o rio alonga-se por zonas mais planas.
Uma casa, lá longe, com a estrela dourada.
O edifício está degradado. Talvez abandonado.
Uns quilómetros mais à frente, o rio estreita entre montanhas íngremes. São torres de calcário.
Umas isoladas, outras em forma de cordilheira.
Não se percebe bem a definição das cordilheiras.

Umas atrás das outras e o nevoeiro torna indefinido o recorte.
Ao final do dia, o céu vai ganhando várias cores. Em contraposição ao verde que sobe os montes salpicado do branco do calcário.
O almoço foi peixe fresco. Pescado no rio durante a viagem.
A refeição é breve.
Os sentidos estão mais dirigidos para o Li e as montanhas. Num caminho lateral, estreito, os turistas procuram as melhores perspectivas.
Para registarem a paisagem.
Na verdade, não é preciso. É inesquecível.
Yangshuo
A chegada a Yangshuo foi a meio da tarde.
Chuviscava e a tarefa era encontrar alojamento.
Yangshuo era uma pequena povoação. Com casas antigas e algumas ruas estreitas.
Na via principal, a west street, letreiros em mandarim e em inglês anunciavam pequenas hostels ou quartos.
Não tinham grande aspecto. Por fora dava para perceber que Yangshuo era preferida por mochileiros.
Segundo as notícias, a culpa foi do Lonely Planet.

No final da rua um homem indicou-nos um local, rodeado por um muro e com uma grande porta de madeira.
Fomos atendidos por uma mulher, levou-nos para uma pequena casa e deixou um bilhete com o preço.
Nunca mais a vimos.
No dia seguinte, como não aparecia, deixámos o dinheiro e fizemos o “check out”.
No interior da casa estava uma cama grande, com roupa limpa e no tecto um enorme mosqueteiro. Ao lado, uma mesa com uma máquina de ferver água e duas chávenas. Fixe, dava para fazer chá.
Voltámos de novo ao centro da povoação.
Fizemos mais uma vez o percurso pela west street onde deu para ver vários jovens ocidentais. A passear ou às compras nas tendas de rua.
De seguida fomos ao cais.
Só o barulho da água a correr por uma pequena cascata. Nada mais.
Lá em baixo, junto à água, um homem com alguma idade, depenava um frango. Estava com as pernas dobradas, uma posição tipicamente chinesa.
Com o corpo ligeiramente curvo, colocava o frango dentro de água.
A corrente ajudava a limpar as penas. Poucos segundos depois retirava o animal, voltava a depenar.
Mais um pouco… com calma, com toda a paciência deste mundo, a paciência de chinês.

Regressados ao centro, o caminho foi feito por uma via com vista para um lago. Do outro lado, algumas casas de um ou dois pisos reflectiam-se na água. Atrás, as formações de calcário que circundam a cidade. Como se fossem um anel protector. Pelo caminho fizemos compras para o jantar e o pequeno almoço. Essencialmente fruta.
Depois do pequeno almoço com chá, bolachas e fruta seguimos caminho para a paragem das camionetas. Foi este o meio escolhido para o regresso a Guilin. Junto à paragem, depois de comprar os bilhetes, tiro uma fotografia a uma criança. A mãe toda sorridente e depois do click veio ter comigo de mão estendida. Apesar da presença permanente de estrangeiros, os locais manifestavam curiosidade. Ao longo do percurso a curiosidade foi aumentando com os que iam entrando. Descaradamente olhavam para nós, falavam entre eles e davam sonoras gargalhadas. Porquê vai-se lá saber…
A viagem foi num autocarro de transporte local. Hoje há várias ligações por dia. Não era o caso na altura. Não havia transporte para turistas. Só a velha camioneta que fugia da estrada principal e percorria várias localidades do interior.
Muitos camiões, atrasavam a viagem.
Era também frequente ver side-cars e bicicletas. Principalmente nas proximidades de Guilin. As camionetas e os camiões têm correntes entre os rodados. Para a eventualidade de um choque com bicicletas evitar o atropelamento.
Chegámos a Guilin umas três horas depois.

Nova saga no aeroporto. Quase todo o dia.
O destino era Xian.
Só através da técnica do passaporte conseguimos bilhete. Já era de noite.
A nossa companhia no avião era uma norte-americana. Agente de viagens nos EUA, tinha sido convidada pelo governo da China para estimular o turismo e conceber programas de viagens.
Ela estava desconcertada. Como pode esta gente angariar turismo com alguma qualidade com esta desorganização! Nem os contactos prometidos pelo governo aparecem! No aeroporto de Guilin ficou de ser recebida por um agente de turismo oficial. Esperou horas e nada. Teve de se desenrascar e só no hotel, muito tempo depois, foi abordada por um homem que lhe pediu imensas desculpas. Já numa outra cidade tinha sucedido o mesmo. Agora estava para ver o que se ia passar em Xian.
Xian
Foi a norte-americana que nos recomendou (pelo mesmo valor que lhe tinham vendido) o People’s Hotel. Hoje, totalmente reformulado, pertence a uma cadeia internacional e é o Sofitel Legend Peoples Grand Hotel Xian.
Construído no tempo da amizade entre chineses e russos, o hotel tinha uma arquitectura sino-soviética, com traços franceses.
A fachada, de seis andares, é em pedra, com largas colunas e uma entrada sumptuosa.
No interior a recepcionista diz que estão praticamente cheios. Só tinham livre uma suite.
Sem volta a dar, tivemos de aceitar.
Fomos para o terceiro ou quarto piso
O hotel quase vazio e a nossa suite tinha o tecto cheio de humidade e o reboco a cair!
Depois de uma queixa e de nova insistência, mudaram-nos para outra suite.
Quarto alcatifado, uma cama normal e uma sala mais pequena ao lado com mobiliário normal. Era esta a suite.
Nada comparado com a qualidade e o requinte de hoje do Sofitel.
Talvez ainda não fossem dez da noite, por aí… Jantar no hotel.
A esta hora só no restaurante do piso “x”.
Tivemos de dar uma enorme volta. Afinal, o restaurante era junto de uma pista de dança.
O menu restringia-se a um ou dois pratos. Demoraram uma eternidade. Não havia mais clientes. Na pista de dança, duas chinesas com vestidos brilhantes, colados ao corpo.

No dia seguinte vimos a norte-americana a passar no hall do hotel, sorridente e acompanhada de um chinês. Afinal as coisas já estavam a correr bem. Nós fomos com um guia fazer uma visita a Xian. O destino era o museu dos guerreiros de terracota. Fica a 35 km.
Pelo caminho, uma paragem numa olaria. Para ver os artesãos a trabalhar a terracota. Uma massa argilosa que, no caso da zona de Xian, em vez do alaranjado natural, tem uma cor cinzenta escura, semelhante à coloração que foi dada aos guerreiros. São pequenas olarias, que trabalham ainda de forma rudimentar, para o pequeno comércio da cidade e em particular para os turistas. Os artesãos produzem muitas réplicas de moedas antigas e de estátuas dos guerreiros de Qin Shi Huang, o primeiro imperador da China.

O mausoléu do primeiro imperador Qin e o pavilhão com os milhares de guerreiros já é bem diferente. São imponentes. É o postal ilustrado de Xian e uma das principais atracções turísticas da China. O sitio arqueológico está classificado como património mundial da humanidade pela UNESCO.
É fascinante entrar no pavilhão e dar de frente com as cerca de seis mil estátuas. Todas alinhadas, nas valas, e rodeadas de terra. Olham de frente para quem entra. Como se estivessem vigilantes. A cumprir a função original, proteger o imperador, cujo mausoléu se encontra a pouco mais de um quilómetro. As estátuas são de guerreiros, cavalos e carruagens.

Ao lado, há um museu onde alguns destes materiais podem ser vistos em detalhe e com uma breve descrição.
No exterior, no acesso ao pavilhão, havia uma rua larga, cheia de vendedores ambulantes.
A nossa visita começou a meio da manhã, Pouca gente. Eu levava uma câmara de filmar Panasonic NV-M5 (vejo agora que já faz parte dos museus) e que era enorme.
Coloquei a câmara no ombro e fui avisado pelo guia e que era proibido filmar ou fotografar. Minutos depois chegou uma excursão de japoneses.
Não pararam de tirar fotografias. Ninguém disse nada.
Se eles podiam, porque não eu?!
Filmei e fotografei.
Estivemos o resto da manhã neste sítio arqueológico e a visita terminou com a compra de um chapéu e luvas de pele no mercado ambulante.
Após o almoço visitámos a Small Wild Goose Pagoda onde está o pagode budista, enorme e rodeado de um belo jardim.

Esta área estava muito bem cuidada. Permite uma boa caminhada. No alto está o Museu de Xian.
Tinha aberto ao público um ano antes e nada se compara com a estrutura moderna dos dias de hoje.
Tinha várias peças em exibição e, quase no final, um esqueleto humano muito antigo. Mesmo muito antigo.
Coloquei a câmara no ombro, premi o botão de “record” e ouço um grito. Parei de imediato. Um polícia, vigilante do museu, veio a correr.
Tirou-me a câmara, foi para o exterior do edifício, eu atrás dele, passou a milímetros de um pequeno muro, entrou pela porta principal e foi para uma casota com uma porta de vidro. Estava lá outro guarda.
Falou, falou, em voz alta. Eu não percebia nada.

Colocou a Panasonic em cima de uma mesa e queria ver a filmagem.
Cada vez que se aproximava do óculo eu baixava-o.
Ele levantava. Eu baixava.
Ele insistia eu batia-lhe na mão e o óculo vinha de novo para baixo.
Estivemos nisto uma série de tempo.
Cada um mais exaltado que o outro.
Ele desistiu.
A fase seguinte foi a multa. Preencheu um papel picotado e mostrou.
Eu gesticulei que não. Não tinha dinheiro. Tirei a carteira, mostrei, pouco havia. Dei-lhe para a mão.
O colega bateu-lhe na perna para ele aceitar. Mas recusou.
Queria o valor completo.
Apontava para os números que tinha escrito. Mas eu não tinha mais dinheiro…
A cena já levava alguns minutos. Apareceu o guia e perguntou o que se passava. Expliquei que não tinha filmado, não sabia que era proibido e que o homem me queria multar.
Ele falou depois com o guarda e aconselhou-me a pagar.
Ok, eu pago, mas ele tem de preencher o valor da multa na outra parte do picotado. A que fica no livro. O guia insistiu. Pague.
Lá tive de tirar a bolsa pendurada ao pescoço e pagar.
Já na porta de saída o guarda vai ter com o guia e têm um breve dialogo. Só percebi o nome do hotel “Renmin”.
Pouco depois, no exterior perguntei ao guia porque tinha citado o nome do hotel.
A resposta dele foi clara: ele perguntou e eu tive de responder. Ele acha que perdeu a face e eu aconselho-vos a saírem o mais rapidamente possível de Xian. Oops!

Na viagem de regresso ao hotel reflectimos sobre a ameaça e levámos o caso a sério.
Ouvimos várias histórias sobre a reacção dos chineses quando sentem que perderam a face.
OK, está decidido. Termina a estadia em Xian e vamos para Pequim.
No hotel deram a direcção do escritório da CAAC, onde fomos ainda ao final da tarde.
Voos esgotados. Comboio era impossível.
A única alternativa era ir de avião até Zhengzhou e depois seguir viagem de comboio.
Assim foi.
Táxi de novo para o hotel. Não saímos e trocamos a cassete VHS.
Reservámos um táxi para o dia seguinte. A partida era bem cedo.
De partida de manhã e check out. Tem a pagar 3 coca colas e um pacote de snacks, diz a senhora do outro lado do balcão.
Não, deve ser engano. Não consumimos nada do frigorífico.
De novo ela: mas é o que tenho aqui registado, tem de pagar.
Passei-me.
O hotel do povo coloca-nos numa suite porque estava cheio … de ar.
Serviços maus que nem jantar decente serviam e agora pagas o que não consumiste.
O diálogo não passava disto. Não. Não pago. Mas tem de pagar.
Já com a voz exaltada. Olhe. São seis e pouco da manhã. Eu não pago e vou pôr-me os berros e acordo toda a gente. No meio da discussão que já estava a ficar agitada apareceu um homem na recepção. Expliquei mais uma vez.
Eu não fui. Não foram consumidos produtos. Ok, vamos então resolver o problema. Você escreve que não consumiu e assina. O problema fica resolvido. E ficou.
No aeroporto havia vacas a pastar na pista.
Eram meia dúzia os passageiros.
Fomos a pé e percorremos ainda uma grande distância. Mandaram-nos parar próximo do avião.
Uma porta pequena no exterior do aparelho, próximo da zona do WC, estava aberta e teimava em não fechar. Minutos depois apareceu um homem de bicicleta. Casaco de cabedal castanho. Também tentou fechar. Uma, duas vezes. Não conseguiu.
Enfiou um pontapé e cumpriu o objectivo.
Chamaram os passageiros.
Os bancos eram de madeira. Nós fomos para a penúltima fila. Os chineses ficaram à frente.
Atrás de nós as duas hospedeiras adormeceram mal o avião levantou. Só acordaram quando as rodas bateram no chão, na aterragem.
Zhengzhou
O voo demorou cerca de duas horas.
A gare de Zhengzhou era uma barracão de madeira. Nada comparado com o que é hoje.
Tinha uma senhora muito simpática ao balcão. Dissemos que queríamos ir para Pequim. Respondeu o que já sabíamos. Não havia avião. Só comboio.
Escreveu num papel, em Mandarim, “queremos ir para Pequim”.
Chamou o único taxista que estava na praça. O homem não queria fazer o serviço.
Ela (o nosso anjo salvador) pediu e ele acedeu.
O táxi era curtido. Sentado no banco de trás, via o chão, a estrada, debaixo dos meus pés.
Zhengzhou é uma cidade industrial.
O guia informava que poucos sabiam falar inglês.
Turismo aqui é raro. Só para os apaixonados de artes marciais.
Nova experiência inesquecível.
Desta vez na gare dos caminhos de ferro.
A praça estava repleta de gente. O taxista largou-nos num dos extremos.
Mal saímos, um grupo de chineses começa a rodear-nos.
Primeiro a curiosidade limitava-se a um olhar muito próximo. Depois uma aproximação asfixiante. Por último, a mexerem na nossa roupa, no cabelo, nos sacos.
E. começa a ficar preocupada. Grita para os assustar. De nada valeu. Eles apertavam o cerco e os braços.
De repente chega a polícia, com uns paus grossos e começa a afastar as pessoas.
Abrem um corredor e um dos polícias leva-nos para longe da multidão.
Para um espaço reservado da praça, mesmo em frente da entrada da estação.
A porta estava fechada. Depois de ele bater à porta, aparece uma mulher. Tipo matrona. Ela não entende nada. Mostrámos o papel. Finalmente uma resposta. O dedo aponta para o outro lado. O que quer ela dizer?
Não deu oportunidade para clarificar porque fechou a porta.
Seguimos a direcção que ela apontou.
Meio perdidos não sabíamos muito bem o que fazer. Regressar para o meio da multidão? Era esse o sentido.
Um outro polícia, daqueles que têm uma farda castanha, veio ter connosco.
Outro anjo salvador!
Viu o papel e foi o nosso guia.
Voltámos ao meio da multidão mas agora eles não se aproximavam. O respeitinho é maior que a curiosidade.
A área da praça devia corresponder a meio campo de futebol.
Em cada extremo uma estrutura de bambu com um polícia no alto a vigiar.
No meio da praça, milhares de pessoas. Um exército de esfomeados. Gente que comia, defecava no mesmo sitio. Ali, no meio da praça.
Um homem vestido com uma pele, não curtida. Gente sentada, sem nada, só lixo.
Eram chineses que vinham do interior rural muito pobre para a cidade dos empregos, à procura de trabalho. Não encontravam. Não tinham para onde ir. Não tinham nada. Só lhes restava ficar a vegetar por ali.
O polícia levou-nos para umas arcadas. Escuras e com erva seca junto a uma parede.
Era onde se deitavam.
Do outro lado, as bilheteiras. Com filas enormes. Autoridade é autoridade e ele foi para a frente da fila.
Alguns protestaram mas ele nem respondeu. Segundos depois veio ter connosco, disse qualquer coisa. Devia ser o preço. Tirámos algum dinheiro, colocamos na mão dele. Ele sorriu, contou e pediu mais. Do saco ao pescoço saíram mais umas notas. Confiámos. Também não importava. Mas ele inspirava confiança.
Com os dois bilhetes levou-nos de novo para a estação. O mesmo ritual. Bater à porta… a matrona e desta feita convidou-nos a entrar.
Mil agradecimentos ao polícia e entrámos num outro mundo.
Uma estação enorme (as imagens de hoje revelam que sofreu uma grande transformação), construção de pedra, quase vazia. Silêncio. Apenas um leve bruá que vinha do exterior.
Numa sala com sofás decorados com uma renda branca, quatro homens conversavam.
Cumprimentaram com um sorriso. Numa mesa um fervedor eléctrico com chá e vários copos de vidro.
A noite aproximava-se.
Ouve-se um comboio. Pouco depois, do lado esquerdo da estação, no exterior, uma correria de milhares de passos.
Como o som de uma manada de animais num filme de westerns.
A terra treme.
São pessoas, chineses, às centenas, a correrem para o comboio. O interior da estação isolado. A agitação do povo não perturbou a conversa dos quatro homens.
Eles eram dirigentes do PC chinês.
Seguiram viagem no nosso comboio e, dois deles, até foram nossos companheiros na carruagem cama.
Eram delegados ao Congresso que se reúne de cinco em cinco anos.
A viagem foi durante a noite.
No corredor passava de vez em quando uma pessoa com um recipiente de esferovite com comida.
Decidi ir procurar algo para servir de jantar.
Havia um vagão com um fogão enorme onde faziam a comida. Todo preto e com a tinta solta. No meio, uma panela enorme com arroz.
Os chineses ficaram admirados com a minha presença, depois sorriram. Apontei dois, com os dedos e para as embalagens de esferovite. Moedas na outra mão, eles tiraram algumas e fizeram o gesto de ok. Arroz seco. Melhor do que nada.
Os delegados aos congresso leram e tiveram pequenos diálogos e depois deitaram-se.
Acordámos ao princípio da manhã, a entrar na estação de Pequim.
Beijing

O sol estava a nascer. A estação não tinha muita gente. Um ambiente mais calmo do que esperava.
Pela indicação do guia da CFW Guidebooks optámos pelo Beijing Dong Fang Hotel. Não tem nada a ver com o de hoje. Este é muito mais recente.
O de 1988 era um edifício de vários andares, com alguns turistas indianos e de qualidade sofrível.
Um atendimento lento e o pequeno almoço não era fácil. Mesas sujas, pouca comida e o serviço muito lento.
Pequim foi, de certa forma, uma surpresa. Esperava uma cidade mais concentrada, com zonas urbanas renovadas e mais uniforme.
Nada disso.
Edificios de vários andares definiam as avenidas centrais, que foram concebidas para a possibilidade de aterrarem aviões em caso de guerra mas, nas ruas traseiras, dominavam casas de dois andares, pobres e ruas em terra batida. Muitos dos edificios eram de comércio tradicional e pequenas oficinas de carros e bicicletas.
Nada tem a ver com a Pequim dos últimos anos.
Numa destas lojas compramos um tecido e o pagamento foi feito através de um complexo sistema de fios pendurados no teto onde corria uma mola com o papel da conta que tinhamos de pagar junto à saída. Na rua circulava muita gente com ar rural, poucos com aspecto executivo e um formigueiro de bicicletas por toda a cidade.
Os poucos vestígios ocidentais eram turistas, o Kentucky Fried Chicken próximo da Praça Tiananmen e pouco mais.

A Praça Celestial era um lugar calmo.
Não muito longe, o edifício do Comité Central do Partido Comunista, também não tinha grande agitação e vigilância.
A revolta pro-democracia dos estudantes em Tianamen foi um ano depois.
A praça, a terceira maior praça pública do mundo, tinha muitas pessoas a passear.
Famílias com as crianças e outras que deviam estar de passagem.
Via-se em segundo plano os telhados dos palácios, o longo muro vermelho, e na parte superior do arco da entrada a foto de Mao Zedong. A Cidade Proibida.
A fila para a compra de bilhete era grande. Tivemos de esperar alguns minutos.
A quase totalidade eram chineses.
O acesso exclusivo à família imperial e aos seus servidores tinha acabado em 1925.
Agora, todos podiam visitar a Cidade proibida e, nessa altura, também se podia aceder ao interior de muitos pavilhões, até o do trono do imperador, no Palácio da Suprema Harmonia.

Como a “Cidade Proibida Púrpura” é muito grande, tem mais de 720 mil metros quadrados e quase um milhar de edifícios, a grande quantidade de visitantes não se reflectia em grandes concentrações.
Deu para visitar pavilhões com muito pouca gente, percorrer ruas e jardins sem a confusão habitual dos locais turísticos muito procurados.
Praticamente todos os palácios têm a mesma arquitectura tradicional e apesar dos saques e destruição, no interior destes edifícios era possível ver materiais preservados e de grande valor.
As estátuas nas escadarias, os mosaicos decorados, as paredes de madeira trabalhada e pintadas de vermelho, a decoração dos tectos, as pontes de mármore, os jardins… são elementos que se mantêm até aos dias de hoje e que revelam o modo de vida do Imperador e dos seus servidores e dos rituais que aqui tiveram lugar em quase seis séculos.

O Palácio da Suprema Harmonia é um dos lugares mais marcantes.
O edifício é todo em madeira, enorme, o mais alto da Cidade (35,5 metros), com acesso através de uma praça ampla.
Antes de se chegar ao palácio tem de se subir uma escadaria.
Ao lado das escadas destacam-se corredores de mármore que, aparentemente, funcionam como pequenas muralhas protectoras do palácio. Têm estátuas douradas representando dragões.
O lugar onde está o trono imperial, dois metros acima do piso interior, é imponente mas, ao mesmo tempo, sombrio, frio e distante. As colunas com inscrições douradas, as cores de jade e as escadas de mármore quebram a frieza.

Cidade Proibida foi classificada Património da Humanidade em 1987, um ano antes da nossa visita.
O regresso ao hotel não foi fácil. Dezenas de táxis parados mas nenhum queria fazer o serviço.
Tivemos de nos colocar num cruzamento com semáforos. Entrar dentro do carro quando um parasse. Assim foi.
O taxista refilou, refilou mas acabou por nos conduzir ao hotel.
Eles têm de atingir um valor para serem remunerados. Como facilmente atingiam esse valor, preferiam parar do que gastar dinheiro em combustível e não receberem mais. Mais tarde, noutras visitas a Pequim, foi-me dito que, entretanto, tinham subido o valor mas o resultado prático era o mesmo.
À noite conseguimos contornar o problema.
A solução era telefonar para o hotel que eles conseguiam arranjar táxi.
Cansados e já sem paciência para aturar o mau serviço no hotel, a dificuldade das deslocações, os preços inflacionados para turistas…. decidimos adiar a visita à Muralha da China e a Xangai. Ainda por cima não havia de imediato transporte para estes destinos.
Foi uma decisão disparatada mas tinha-se esgotado a famosa “paciência de chinês”.